Identificar e denunciar "irregularidades" cometidas por veículos de imprensa são atribuições comuns a pelo menos três das quatro propostas de criação e remodelagem de conselhos estaduais de comunicação. Em tramitação em quatro Estados do Nordeste (Ceará, Bahia, Alagoas e Piauí), os projetos são apresentados oficialmente como indutores de novas políticas públicas de comunicação, porém três com caráter abertamente fiscalizador.
Projeto mais avançado até agora, o Conselho Estadual de Comunicação Social do Ceará (Cecs) teve seu texto aprovado na semana passada pela Assembleia Legislativa. De lá, a proposta seguiu para a Procuradoria-Geral do Estado (PGE), que no momento analisa sua viabilidade jurídica. Se habilitado, o projeto terá o seu mérito analisado pela Casa Civil e pelo governador Cid Gomes (PSB).
Elaborado por um conjunto de organizações sociais, o projeto foi encampado pela deputada estadual Rachel Marques (PT), que o levou ao plenário. Em tratamento médico, a parlamentar não respondeu aos pedidos de entrevista. Porém, um dos responsáveis pelo projeto, o jornalista e professor universitário Ismar Capistrano garantiu que o conselho não exercerá qualquer tipo de pressão sobre os meios de comunicação, porém admitiu a existência de uma "função acessória" de fiscalização.
"Se for detectada alguma irregularidade, o conselho encaminha um parecer ao Ministério Público, que analisa a situação e avalia a necessidade de medidas cabíveis", afirmou Capistrano, coordenador de formação da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária do Ceará. Ele esclarece que o projeto aprovado em plenário é de indicação, e não de lei. Ou seja, trata-se apenas de uma sugestão ao governador, que pode ou não aceitá-la. Em caso positivo, aí então é que seria encaminhado ao Legislativo o projeto de lei.
Procurada, a assessoria de imprensa do governo cearense informou que Cid Gomes ainda não tomou conhecimento do texto em tramitação. Lembrou, porém, que o governador já se manifestou sobre o tema, ao dizer que "nenhum conselho deve ter poder sobre a imprensa".
Para o advogado José Paulo Cavalcanti Filho, ex-ministro da Justiça e especialista em legislações que regulam a imprensa, a criação de foros estaduais parece ser uma estratégia alternativa para a viabilização da atividade do Conselho Federal de Jornalismo, cujo projeto foi rejeitado pela Câmara dos Deputados, em 2004.
"Houve um clamor nacional contra esse projeto e ele não foi aprovado por via federal. Ressurge agora dentro de um projeto de poder mais amplo nas esferas estaduais. É legítimo supor, portanto, que se trata da mesma matriz autoritária", afirmou Cavalcanti. Ele lembrou, ainda, que a criação de conselhos estaduais é inconstitucional, visto que cabe exclusivamente à União regular os meios de comunicação.
E foi justamente por esse motivo que a PGE do Piauí deu parecer contrário à criação do conselho local. Ainda assim, as organizações que defendem o projeto irão apresentá-lo novamente na próxima semana, em reunião com deputados simpáticos à causa. "Consideramos preguiçoso o parecer da Procuradoria", afirmou Oscar Barros, coordenador do comitê piauiense do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), organização que defende a criação do conselho.
Secretário de Comunicação do Piauí durante a gestão de Wellington Dias (PT), Barros participou da elaboração do projeto para criação do conselho estadual. Segundo ele, o órgão seria vinculado ao poder legislativo e teria a função de assessorar os parlamentares em temas que envolvam comunicação social. "Eu quero poder dizer, por exemplo, que o sul do Estado necessita de cursos para operadores de rádio", explicou ele. Outra atribuição do conselho seria o incentivo à produção de conteúdo local.
No entanto, o projeto piauiense também prevê fiscalização dos meios de comunicação. "Se o conselho acha que uma emissora está exacerbando em sua função, ele encaminha o caso à Assembleia e, depois, ao Ministério Público", explicou Barros. "Com o conselho, a vigilância pode ser feita com mais vigor", completou.
Questionado sobre o que poderia configurar tal exacerbação, ele citou o exemplo hipotético de exploração da imagem de pessoas com deficiência na televisão. "Quero deixar claro que a intenção não é calar a boca de jornalista nenhum", enfatizou.
A tarefa de monitorar os meios de comunicação e denunciar "irregularidades" é atribuída aos conselhos de caráter consultivo, que é o que propõe os projetos de Piauí e Bahia. No Ceará, o texto da proposta cita funções "consultivas, normativas, fiscalizadoras e deliberativas" para o colegiado. Em Alagoas, que desde 2001 já tem um conselho estadual de comunicação, a proposta é que ganhe a função deliberativa, ou seja, com capacidade de participar das decisões.
"A proposta surgiu dentro do próprio colegiado, que ao analisar algumas questões entendeu que também deveria colocá-las em prática", afirmou o presidente do conselho, Marcos Guimarães. Ele afirma, entretanto, que o projeto está parado no Gabinete Civil estadual. "Ainda está em manuscritos", contou.
Assim como os demais, ele também negou que haja qualquer intenção de cercear a liberdade de imprensa em Alagoas, porém admitiu que o órgão exerce fiscalização sobre o conteúdo produzido no Estado. "Se você tem um programa de televisão que exibe um cadáver ao meio-dia, isso tem que ser discutido. A sociedade tem que discutir a informação que consome", opina.
Para Cavalcanti Filho, os conselhos estaduais representam uma volta ao passado. Ele defende que o controle dos meios de comunicação seja feito sob a forma de indenizações mais pesadas sobre a publicação de conteúdo considerado equivocado ou difamatório. "Se o jornal mentiu, que pague a indenização. O controle se faz no bolso. No mundo todo é assim".
Na Bahia, o projeto que visa a criação do conselho local também está sob análise técnica da PGE. O secretário estadual de Comunicação, Robinson Almeida, afirma que a proposta não faz menção a qualquer controle sobre os meios de comunicação. "A sugestão é de que atue na elaboração de políticas públicas, como apoio à produção de conteúdo regional, inclusão digital e democratização da informação".
Segundo ele, o maior benefício da criação do colegiado será "a possibilidade de a sociedade participar das discussões sobre as políticas públicas, assim como acontece nas áreas de Saúde e Educação". "Para o governo da Bahia, a fiscalização dos meios de comunicação é da própria sociedade, pelo controle remoto", afirmou o secretário, para depois informar que o projeto deve ser encaminhado ainda este ano para a Assembleia Legislativa.
Cavalcanti Filho tem dúvidas se a criação dos conselhos estaduais pode trazer riscos reais para a liberdade de imprensa no Brasil. Segundo ele, tudo vai depender do tratamento que Brasília dará ao tema. "Se o grupo dominante no poder quiser disseminar essa ideia, aí é um horror. Aí é um modelo de matriz claramente autoritária", avaliou.
Murillo Camarotto | Do RecifeFonte:
Valor Econômico